quarta-feira, 23 de abril de 2008

Coluna Crônicas Valeparaibano: As Dores de Luciana




As Dores de Luciana

(Em 28/01/2004, jornal Valeparaibano)


Luciana porquê a avó materna se chamava Ana e a paterna Lúcia. Luciana tem quarenta e oito anos e uma forte cólica de rins. Sente tanta dor que não consegue nem ao menos sorrir. Tem no rosto uma verruga que chega a tremer tamanha deve ser sua dor. Outro dia, sentado no ponto de ônibus, numa espera que nunca acabava antes de trinta minutos, Luciana chegou, cumprimentou a todos e sentou-se, conversa vai, conversa vem começou a contar sua história para uma terceira personagem. Eu escutei, apenas escutei:
_ Ah! Boba, minha irmã sempre foi mais bonita que eu. Também era muito mais velha, uns oito anos para arredondar, já era mulher feita, tinha as formas que eu ainda ia ter. Os moços que apareciam eram sempre para ela. Ninguém me via, ela se exibia, até entre os irmãos ela era preferida. Às vezes nem me lembro deles, mas dela nunca me esqueço.
Tudo eu engolia, mas um dia eu vomitei. Maurício chegou, bonito, o mais bonito de todos: alto, olhos verdes, muito verdes, eu só conseguia olhar nos olhos, me encantei pelos olhos, nunca tinha visto coisa igual.
Minha irmã não ia querer, sempre desprezava, se dizia moça demais para casar, que ainda iria fazer muitas coisas na vida...
Ela o quis, com certeza só para me magoar, ela o quis. Assisti durante meses o que me pareceram anos: o namoro, o noivado, o casamento. Ela casou-se no dia do seu aniversário, fazia vinte e um anos. Eu a odiei. Odiei ser para todos uma criança.
Ela mudou-se para longe, mas eu nunca a esqueci. Imaginava, sem nenhum pudor, estar em seu lugar. Enquanto eu crescia, todos se iam, restaram minha mãe e eu. Minha irmã teve dez anos de felicidade enquanto para mim eram de dor. Numa tarde, mamãe chegou com a carta e avisou que Maurício ia chegar com a família, minha irmã estava doente e precisava de cuidados.
Vieram, nem me lembro do rosto dela, mas ele continuava belo. Os filhos, três meninos, eram-lhe cópias fiéis. Cedi meu quarto e mudei meu semblante; após alguns dias, comecei a ter uma cólica de rins que me acompanha até hoje, a dor era tanta que não conseguia nem sorrir. Ainda não consigo.
Maurício logo começou a trabalhar novamente e eu a cuidar dela e das crianças e assim ficou durante oito meses, aos poucos meu coração se acostumava a vê-los sempre por ali, em torno de mim.
Cada beijo, cada despedida, cada gemido me sufocava na noite, me apunhalando pelas costas, numa dor que percorria cada centímetro do corpo que agora era de uma mulher.
Certa manhã, levantei, dei café a todos e fui levar o dela. O quarto estava silencioso, ela dormia tão profundamente que não quis acordar. As horas foram passando e ela não acordava, voltei ao quarto e percebi que estava morta.
Não sei o que senti naquele momento, tanto passou pela minha cabeça que não pude perceber a amplitude do instante. Passado todo o funeral, Maurício e sua família ficaram morando conosco, era o mais apropriado. Nos primeiros meses tudo transcorria normalmente, ele trabalhava, eu e mamãe cuidávamos da casa e das crianças.
Quando lembrava-me de minha irmã, só pensava em seu marido, era como se ela tivesse sido apenas um adiamento da minha felicidade. Apossei-me do seu lugar, fazia o que à ela havia competido. Educava e alimentava seus filhos, lavava e passava para seu marido, e finalmente deite-me em sua cama.
Não me culpava, estava recuperando dez anos de escuridão, foram quatro anos de estranha felicidade, apesar de feliz eu não sorria e a dor não passava.
Uma fatalidade me interrompeu. Maurício morreu num acidente de carro. Como pagamento por tanta espera, tive uma carrasca herança: uma mulher idosa e três sobrinhos para terminar de criar, ainda uma profunda saudade do quê não vivi e do quê não vivi o suficiente. Passou, tudo passa.
_ Credo, Menina, só essa dor nos rins é que não passa.

O ônibus dela chegou. A mulher se levantou e foi embora. Eu perdi dois ônibus e tive que esperar muito mais, conclusão.
Não é a cólica de rins que impede Luciana de sorrir. É a falta de sorriso que lhe dá a cólica de rins. Quanto a mim, não são os ônibus que demoram demais, eu que chego mais cedo para escutar a matéria-prima.


Sônia Gabriel 



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