terça-feira, 9 de maio de 2017

Coluna Crônica Jornal de Caçapava: Com o suor do teu rosto...



(Jornal de Caçapava, 05 de maio de 2017.)

Qual a sua relação com o ofício que você exerce? Já pensou nisso? Eu tenho pensado muito sobre, de alguns anos para cá, por conta de um livro que venho escrevendo. Desde a faculdade, ainda muito jovem, passei por inúmeros autores que se dedicaram ao estudo do mundo do trabalho. Os revisito, quando possível. Obras existem aos montes, mas como é de conhecimento obras de pesquisa muito raramente chegam às nossas estantes operárias. Ficam, na maioria, restritas aos recôncavos da academia. Enfim, não é para este momento essa prosa.
Eu trabalho desde os treze anos, está registrado na carteira profissional, rosto de criança carimbado Malharia Nossa Senhora da Conceição, cidade de Jacareí-SP, nove horas diárias dentro da fábrica dobrando meias. Era preciso. Desenvolvi uma escoliose que levou anos para ser eliminada, pois, cansada, tinha que me apoiar de lado para manter-me em pé; trabalhávamos em pé o dia todo. Era preciso trabalhar. Em nossa família nunca houve outra opção para nossa sobrevivência senão o trabalho. Educação forte que meus pais legaram.
O interessante é que apesar do desgaste, eu não me recordo de sofrer, pois, como mencionei, em nossa casa o trabalho era muito valorizado. É óbvio que meus pais não sonhavam que eu trabalhasse com essa idade, tanto que continuei estudando e quando, alguns anos depois, a "fábrica" queria que trabalhássemos em turnos e isso me impediria de estudar, minha mãe me explicou que era preciso sair daquela empresa. Com o passar dos anos e sempre trabalhando, formei-me e pude exercer o ofício que sonhei.
Trabalhar no que se gosta é um privilégio, mas há pessoas que mesmo não atuando na profissão desejada tem com o trabalho, com a ação de trabalhar, uma relação de apreço que me comove. Tem gente que não sabe não trabalhar, sente-se importante construindo, realizando, vislumbrando... O trabalho é, sim, uma dignidade a mais em nossas histórias individuais para além da necessidade coletiva. Note que não estou tendo a pretensão de numa crônica fazer uma reflexão profunda sobre as questões do mundo do trabalho; apenas, hoje, estou pensando em mim e nas pessoas que compartilham desse prazer que é ser sujeito.
É pesaroso ver tanta gente em busca de trabalho ano após ano, ter sua capacidade de trabalhador ser explorada e desrespeitada por precisar sobreviver; termos nossos direitos de trabalhadores serem usurpados na mais descarada leviandade.
Também não me escapa como tantas pessoas são infelizes em suas profissões, recortes que nos levam a considerar que o trabalho, em sua multiplicidade histórica e filosófica, pode ser um castigo, pode ser fonte de sobrevivência, pode ser uma realização, pode ser um prazer.
Dialogando com o cotidiano atrevo-me a pensar que pode ser o que você é, o que você sente e o que você pensa. Carregamos para o que fazemos o que somos e isso explica como em trabalhos iguais pessoas semelhantes se portam de maneiras tão diferentes. Há pessoas desgastadas e grosseiras em altos cargos como há pessoas gentis e alegres nos mais humildes ofícios. Dadas as mais inusitadas circunstâncias pelas quais passamos, como fazemos o que fazemos em muito reflete o que somos.

Sônia Gabriel


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