terça-feira, 2 de junho de 2009

Para Guardar


Rita sempre nos brinda com textos magníficos, ser citada em um deles é uma honra, quero dividir esta alegria com vocês.
Sônia Gabriel

Gastronomia literária

Rita Elisa Sêda é poetisa, cronista e fotógrafa.
Fonte: Jornal Valeparaibano, 05/02/2009.


De repente me vi envolvida com a gastronomia literária. Isso mesmo. Ela existe. Só me dei conta disso agora, fui absorvendo tudo em doses homeopáticas. Acalentando a imagem de um fogão à lenha, panelas fumegantes, um livro, um caderno e um lápis. Todos fundamentais para uma criação, para um descobrimento, para filosofar, para cozinhar.
E, ontem, filosofando literatura, na companhia de muita gente inteligente, notei o quanto os dois universos se entrelaçam. Sim... foi quando no final da conversa, as pessoas se despediam, um amigo me segredou: 'tava muito bom, só faltou mesmo um bom chá e uns bolinhos'. Na mesma hora me veio a tentação de um prato cheio de bolinho de chuva. Se era porque estava chovendo, não sei. Só sei que me deu uma fome danada.
Saí dali direto para a lanchonete. E, lá, pude constatar minha teoria. Comida e palavras se dão bem. No guardanapo havia uma citação de Cora Coralina sobre a atenção à culinária. Uma amiga leu em voz alta. Eu já havia lido e relido aquelas palavras coralineanas durante anos, mas só naquele momento fizeram sentido para mim. O sentido maior. Só depois de ter vivido mais de 5 anos na cidade de Goiás e ter apreciado a culinária vilaboense para chegar ao sabor das palavras. Daí eu tomei um cafezinho, puro, fumegante, doce. Ele fisgou-me outra lembrança: Buenos Aires. Em cada esquina eu parava para tomar um café. Lá aprendi o requinte desse ato. Foi como entender Clarice Lispector que escrevia absorvida pelas palavras defumadas pelo cheiro do café, ou seria... absorvidas junto com um gole de café, ou melhor ainda... quentes como uma xícara de café. Não sei dizer, só sei que em qualquer uma dessas sinestesias a palavra está contida.
Voltando ao guardanapo. Depois de deixar minha impressão labial, bem rubra, na ponta do guardanapo, dobrei-o e o coloquei na bolsa. Um mistério é a bolsa de mulher. E, num estalo consegui entender a essência da alma de Cora e de Clarice: o fogão! Só quem ama um fogão pode entendê-las. Só quem já ficou horas e horas com o umbigo esfregando num fogão pode comer palavras. Pois ler e escrever, condiz com ... acender um fogo, aquecer a alma, colocar a panela no fogo, colocar as idéias para ferver, pegar a colher, pegar o lápis, mexer, escrever. Deixar apurar. Revisar o texto. Provar. Ler em voz alta. Servir. Publicar.
Agora eu entendo que a comida alimenta o físico, e as palavras alimentam a alma. Por isso Clarice disse que quando não escrevia estava morta, por isso Cora Coralina dizia que a culinária é tão forte quanto a literatura. Por isso ler e comer podem ser conjugados ao mesmo tempo, no mesmo espaço, sob o mesmo olhar e com a mesma satisfação.
Todos os dias converso com uma amiga vilaboense, ela sempre me atende com uma palavra de ânimo, e sempre pergunto onde ela está. Mesmo sabendo que ela está à beira de um fogão à lenha vigiando as palavras... ou melhor... as panelas. São coisas do Reino de Goiás!

O escritor Rubem Alves gosta tanto de culinária que criou o Dali, um restaurante onde o prato principal era a palavra. E minha querida Sônia Gabriel, para estreitar nosso laço de amizade literária me convidou para almoçar - detalhe, para compartilhar o comer foi preciso passar pelo fazer. Entre refogar um feijão, mexer uma panela de quiabo, temperar o frango e lavar o arroz muitas crônicas foram escritas.

Quem sabe um dia haverá mesmo um livro cujas páginas poderemos comer para saciar nossa fome de sabedoria, como aquele previsto por Monteiro Lobato. Já pensou em comer as páginas desse jornal? Sei que não... mas, aposto que ao folheá-lo a primeira coisa que lhe vem à cabeça é a imagem de uma fumegante xícara de café. Bom apetite.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabenizo-as por mais este feito, já figuras consagradas de nossa literatura regional e nacional, a bem dizer.
Teresa

Anônimo disse...

E não é que à beira do fogão muitas palavras surgem? Confesso que minhas melhores ideias saem das "panelas", ou seja, quando estou com elas! Nada mais gostoso do que, realmente, saborear as palavras...
Deliciosa crônica!
Amparo.