terça-feira, 23 de setembro de 2008

Antologia de Contos - 2001


(Selecionado e publicado na Antologia de Contos -2001- da Universidade do Vale do Paraíba)
CONCEIÇÃO COMO TANTAS

A sensação tinha sido mágica, o vestido não era branco, não era uma cerimônia sonhada, não havia convidados, mesmo assim não deixava de ser mágico aquele momento. O casamento. Uma velha conhecida dizia “ existem dois tipos de mulheres as que sonham com o casamento e as mentirosas”, Conceição se casou. No interior pobre do Recife de 1950.
O noivo, um homem muito mais velho, forasteiro, parecia viajado, falava diferente, usava roupas diferentes, mas depois do casamento foi que ela percebeu: a pobreza era igual. Mas como não se apaixonar par alguém que não compartilhava a pobreza de uma infância, os desgostos de da adolescência, enfim alguém que não compartilhava da sua miséria, da falta de sonho. Uma esperança de enxergar lugares diferentes, de ver terra de outra cor, sentir gosto de outras comidas. Na vila todos se casavam com todos. Quanta esperança, já não era ela igual às suas miseráveis companheiras de infortúnio.
Casada, lá vem Conceição atrás do marido, atrás de esperanças que desmoronaram na cidade. A acolhida parecia se distanciando quanto mais se aproximava o asfalto, os edifícios, os automóveis. Sentia na cabeça um pouco de tontura pela fome não saciada durante o caminho, no corpo lembranças da noite de núpcias, conseqüência, preço da esperança de Conceição. Nada de beijos, se bem que mal sabia sobre beijos, a não ser pelos que viu em alguns cartões que um homem, sentado, próximo não se esforçava muito em esconder, maliciosamente olhava fixo mulheres nuas ou semi-nuas , enroscadas em homens completamente vestidos.
O marido havia se deitado com ela, não disse uma palavra. Apenas quando se conheceram fizera um gracejo ou outro, ela era moça da roça: plantava, colhia, implorava chuva para germinação, sol para colheita, menina nova, virgem. Uma a menos para comer na casa do pai. Ouvira pouca coisa da cidade, o suficiente para saber que deveria haver céu já que ali era o inferno. Conceição sentia medo pelo caminho, não tinha mais mãe para olhar, pai para grunhir. Quebrando um silêncio de horas o marido lhe fala:
__ Conceição, vai gostar de meu irmão, passei por lá faz seis anos. Tem mulher e crianças, nos recebe lá, arrumo serviço e casa depois.
Chegaram à cidade após dezesseis horas de viagem. Depois de muito andar, avistaram a casa do irmão do marido. Lugar pobre, mas rico perto da Vila, não havia asfalto, porém estava bem pertinho dele. Moravam muitas pessoas num mesmo quintal, e pela providência divina, não é que há pouco desocuparam um quarto? Tudo se realizando. Conceição tinha um marido, agora uma casa. Em poucos dias o marido arrumou um fogão de duas bocas, uma cama de casal, duas cadeiras, um armário e algumas louças... panelas que brilhavam.
Logo que se acomodaram Conceição se deitou, novamente, com o marido. Ele desde a viagem não a tinha procurado, e ela se sentia melhor assim, mas o atendeu sem queixas.
O irmão conseguiu trabalho em uma construtora, São Paulo sempre tem trabalho na construção e lá vai o marido junto. Benção ser servente dos bons.
Assim que recebeu, comprou coisas melhores para comer e alguns metros de fazenda para um vestido e uma calça e camisa de Domingo.
Conceição passava só seus dias. As pessoas falavam muito nos quartos. Quando saia para ir ao banheiro, ou, para buscar água reparava que a olhavam. Era uma estranha, sabia que não falava como eles. Soltava sons de bom dia ou o oposto. Gostava quando o marido chegava, não falavam muito, mas já não era solidão.
A cunhada era faladeira e andava pelos barracos o dia todo. Tinha muitos filhos; Conceição nunca contara, se perdia só de olhar. A cunhada vinha com umas conversas estranhas de vez em quando. Investigava para saber se o cunhado a procurava, se ainda fazia direito, já que era grande a diferença de idade. Ficava perguntando se Conceição gostava, dizia que era uma das raras coisas a que pobre tinha direito. Conceição não gostava das conversas, mas também não sabia por quê. Não entendia como uma coisa tão sofrida e desagradável podia ser de tanto gosto da cunhada.
Passados alguns meses e alguns móveis a mais o marido chega de tardinha, entra, Conceição, barriguda, o cumprimenta só com a cabeça, o marido não responde, depois fala que está sem trabalho, acabou a obra, não sabe quando começa outra. Acabada a obra, foi-se acabando a comida, Conceição ficava em casa, parada, apática, olhando... a barriga crescendo. Estava sempre calada não podia perceber-se se pensava. O marido não pagava o aluguel. Bebia o pouco que arranjava na rua. O quarto foi ficando apertado, sufocava-a, mal cheiroso, já não tinha com que lavar. Precisava de ar. Saiu.
Ela andou pelo asfalto. Cansou. Entrou pelo mato. Sentia saudade da mãe, mas não da seca e nem da enxurrada. Caminhou pelo mato, olhava o rio. Quanto ar! Passou por uma ponte. Voltou. Fitou a água clara, bonita, imaginou que no céu tinha água, comida, sol, tudo no tanto certo, é! No céu devia ser muito melhor. Imaginou um casamento, filhos, uma casa com muitos quartos. No céu devia ser muito melhor, se imaginou conversando, pensando e sorrindo, sorrindo alto. Sentiu uma enorme dor de cabeça. Havia feito um enorme esforço. Pulou
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Sônia Gabriel