quarta-feira, 30 de maio de 2018

Série "Verdade de outro jeito" - Contos 2




Uma menina esquisita

Onde quase tudo faltava, havia um quintal, amor e fé.
A menina era esquisita, pois falava sozinha, contava histórias que o vento trazia de longe.
As flores escutavam, a boneca de sabugo escutava, a laranjeira miúda escutava, o pai escutava e pensava que a menina era mesmo esquisita. Com os cabelos longos despenteados pelo vento, as pernas e os braços magrelos sacudindo ao espaço, rodopiava esquisita no maior quintal do mundo. O quintal da infância dos seus seis anos.
Quando o vento se despedia, ela sorria cheia de esperança das novas histórias que viriam. O barulho da fé só ela escutava, pois, o cansaço da alma não visita as crianças.
A menina sempre soube que amor e fé são coisas lindamente esquisitas e moram, para sempre, no quintal que existe dentro da gente.

Sônia Gabriel

(Especialmente para Maria Salete Martins)

domingo, 20 de maio de 2018

Série "Verdade de outro jeito" - Contos 1




Meia página

Tinha meia família. Vivia de meio emprego. Foi meio amada. Cortava ao meio as refeições. 
Tinha meio pai. Uma mãe meio doente. Uma meia irmã com riso fácil, meio de ver-se de caído lábio sempre ressecado.
Uma vida inteira de inteira solidão.
Acostumada com a dor, espalhava-a pelos cantos como meio de alívio.
Suportado pouco mais de meio expediente, foi para casa. Deixou a porta meio aberta.
Bebeu meio copo de água. Deitou-se no meio da vazia cama imensa. Dormiu apenas meia-noite.
No dia seguinte, meio contrariada,  viu-se acordar.
Foi trabalhar...


Sônia Gabriel