terça-feira, 11 de outubro de 2011

II Dia Valeparaibano de Contar Histórias... continua!



Quando me perguntam se vale a pena ficar pesquisando sobre o Vale do Paraíba, sempre respondo que é o que gosto de fazer, e aí seguem as perguntas de sempre. Eis mais um motivo, dentre tantos que já comentei: conhecer pessoas e seus talentos, suas histórias, suas visões de mundo, seus encantamentos. Ainda estou recebendo histórias e claro, as colocarei no blog. O tempo anda escasso, mas sempre que for possível, vou postando. Agradeço muito o companheirismo por um mundo melhor. A gente começa assim, em casa!
Paz e bem!
Sônia Gabriel


Obrigada, Cláudia, esteja sempre em sua casa, aqui conosco.



"À margem da vida e do rio 
              Claudia helena villela de andrade
            

            O mundo é muito grande. Muito. Tão grande que o atravessamos a pé. É logo ali o fim dele. Depois da curva do rio. Logo ali.
              Ela era filha de uma índia de tribo do Paraná. O pai, ninguém sabe, ninguém viu, mas supunha-se pelo seu tipo, ter sido, um daqueles louros descendentes de alemães que aportavam por lá e deitavam-se com as nativas emprenhando-as ou causando-lhes doenças. Por isto, ela afirmava que havia nascido na fronteira do Paraná com a Alemanha.
          Aos nove anos foi vendida pelo pajé para um sexagenário que a violava e que a carregou para morar no interior de São Paulo, em Lorena, na beira do rio Paraíba do Sul. Aos onze anos era mãe. Apanhava do homem, como se filha fosse. Brincava de boneca com seu bebê e, aos quatorze, ficou viúva. E só. Ficou só. Só com seu bebê. Ela, o bebê e o rio. Porque o rio passava pelo mundo inteiro. Pelo seu mundo. Inteirinho. Pelo seu mundo todo.
        Um dia, caminhou tão longe que não soube voltar. Pensou que estivesse retornando para a sua tribo, mas a direção era oposta. Com o bebê no colo foi margeando as águas que tão bem conhecia e que acreditava fazerem fronteira da Alemanha com o Paraná. Foi quando se deu conta de que o rio não acabava mais e de que a Alemanha tinha ficado para trás, nos louros cabelos dos filhos do Paraná e do seu suposto pai. Cansou-se, trocou o rumo, subiu a pé a Serra da Bocaina e foi parar no sertão de Bananal. Ela e seu bebê.
            Numa tapera de estrada fez a vida. Fez a vida sem saber o que era. Por comida, leite e farinha. Por esteira no chão e pedaço de pão.
           De manhã cedinho, agachava-se na beira do rio para molhar o rosto. Com as mãos em concha coletava aquela água barrenta e, além de beber, farejava para ver se ela trazia algum cheiro conhecido da raiz de sua terra. Nada. Nunca mais achou o caminho de volta.
           Os anos passavam. Ela e sua cria viviam como animais. Carentes de saúde, comida, conhecimento. A escola era o instinto ou o que algum passante dizia ter ouvido falar. Nenhum asseio, nenhum cuidado também. Tomava erva do mato como remédio e sobrevivia com a mandioca e a banana, reminiscência da infância indígena. Também nunca mais engravidou.
          Um dia um fazendeiro levou-a para trabalhar na cozinha da sua fazenda lavando pratos. Aprendeu um pouco mais da vida. Mas apenas o que queria, em sua ignorância crônica e voraz. Nesse estágio, o ser humano, embrutecido assim, não entende muito bem o que ensinamos. Torna-se teimoso porque acha que seu sofrimento lhe deu toda a sabedoria do mundo. Nunca acha que podemos saber mais do que ele.
          Alguns anos depois, não se sabe bem como nem o porquê, ela desceu a serra da Bocaina com seu filho, homem feito, e foi morar numa cidade próxima. Com homens se envolveu, pois ainda era bonita, a cabocla. Sem sorte, entretanto, foi esfaqueada por homem enciumado e quase morreu. O corpo perfurado 15 vezes. Então, com medo, trocou de nome, fugiu sozinha, largando o filho e, nas margens do rio para onde se dirigiu, encontrou sua alma gêmea, igual em sorte e desamparo. Juntos, margeando a vida, vieram parar aqui na minha casa.
           Chegou com o nome de Wilma, mas dizia ser, na verdade, Maria Isabel. Wilma era nome de guerra ou de fuga, sei lá. Não tinha nenhum documento. Nada. Não falava coisa com coisa. Mas sabia negociar, combinar salário e mentir. Junto com ela, o companheiro, um negro de canela fina, trinta anos mais novo, de nome Antônio, trabalhador rural com documentos e referências. Eu podia, claramente, ver seu comprometimento mental. Era vagaroso, meio imbecil, completamente subnutrido, porém sabia assinar e mexer no jardim. Minha mãe, já viúva nesse tempo, o contratou. Era um casal atípico. Ninguém havia visto nada igual. Suas roupas eram trapos coloridos e remendados. A casa em que moravam era de uma sujeira e pobreza de dar dó. Não adiantava falar, arrumar, etc. Eles não admitiam essa intromissão. A cama do casal era enfeite. Eles dormiam no chão. Fogão a gás, nem era usado. Só cozinhavam no fogão de lenha. Banho, nem pensar. Eram imundos.
           Com pena, minha mãe tentava se aproximar para ajudar, ensinar, mas não era bem recebida. Nem ligavam para o que ela falava. Às vezes até concordavam, mas mal ela virava as costas tudo voltava a ser como antes. Dávamos a eles roupas e eles as cortavam, remendavam ou se desfaziam delas. Móveis e utensílios que cedíamos eram vendidos. Para se ter uma idéia do tamanho da ignorância, um dia a minha mãe colocou na casa deles uma televisão. Pensou que, assim procedendo, ajudaria aquele casal a se tornar menos bronco, mais dentro da realidade do mundo. Qual não foi sua surpresa ao ver a Wilma passar de costas pela televisão que o marido assistia. Minha mãe, observando aquilo, questionou e a resposta foi que “estavam dando tiros na tv e que as balas poderiam pegar nela”. A tv durou menos de um mês. Foi vendida. Desistimos de tentar tirá-los da caverna. Deixamos que eles vivessem suas vidas.
            Talvez o mundo seja mesmo do tamanho de um rio e as serras, não tão distantes assim. Um dia, meu tio que morava fora há muitos anos, veio nos visitar. Ele era um homem claro, enorme, de quase dois metros de altura e, passeando pelo quintal, topou com a Wilma, que imediatamente o reconheceu do sertão de Bananal, da fazenda que era de meu avô, onde ela trabalhara há mais de quarenta anos atrás. Os dois se abraçaram e recordaram muitas histórias do mato. Minha mãe, que já sentia muita pena do casal, ficou muito emocionada e, condoída, deixou-os viver como queriam. Em paz.
           Além de todas essas coisas, Wilma era rezadeira e benzedeira. Cobrava direitinho o serviço de ocultismo. Fazia trabalho de macumba, ensinava diversas simpatias como a de enterrar tesoura no terreiro para não cair raio em cima da casa, cobrir espelhos durante o temporal, tomar banho de sal grosso e de rosa branca para tirar mau olhado. Muita gente aparecia para se consultar com a feiticeira ou comprar suas garrafadas de remédio de ervas do mato. O povo simples acreditava nela de verdade.
          Minha mãe, da varanda, só olhava todo aquele movimento de gente na casa do casal. Sacudia a cabeça e dizia “lá vai a Wilma tomar dinheiro dos bobos. Para isso é inteligente e esperta”.
       Depois que minha mãe morreu, nós continuamos com eles. Deus nos acuda! Nos roubavam sem parar. Certa vez, a Wilma veio me vender uma pilha de discos long-play, todos assinados com meu nome, como a gente fazia antigamente. Discos velhos que eu tinha largado ao deus-dará há muito tempo. Ela roubava de mim e queria me vender de volta. Quando eu mostrava o meu nome escrito neles, ela negava e dizia ser conversa fiada. Eu desistia. Ou comprava de volta ou dizia pra ela vender para outra pessoa.
           A velhice de Wilma foi terrível. Não ia ao médico, pois dizia que Deus e os santos da macumba iriam sará-la. Arrastava-se pelo quintal apoiada num cajado. De longe, parecia um duende. Igual aos anões de cerâmica que enfeitam alguns jardins, o que me levou a, uma vez, me gabar de ter o próprio duende em casa. Que pecado.
          Um dia, cismei. Disse-lhe que se aprontasse, pois eu iria levá-la ao posto de saúde, por bem ou por mal. Suas pernas eram dois tonéis. No posto de saúde o médico não queria deixá-la sair. Ela está morrendo. Precisa ser internada para exames e tratamento, disse-me ele. Quando procurei por ela, já havia desaparecido num táxi, com o marido. Voltei para casa e ela, então, me confessou ter muito medo de hospital, por conta daquelas facadas que tinha levado e que a deixaram seis meses internada, quase à morte. Perguntei se preferia morrer então. Naquele exato momento, ela arregalou os olhos e me prometeu que, no dia seguinte, se internaria.
         O dia seguinte não chegou. Wilma, no banheiro, caiu dura e morta. Eu havia pressentido a morte nos seus olhos. Alguma coisa me dizia para levá-la ao hospital. Ainda bem que o fiz, pois me sentiria muito mal se não tivesse agido assim.
          Morrer em casa é uma agonia. Não fosse uma conversa ao pé de ouvido com o médico e um vereador amigo, ela iria para autópsia que é realizada em outra cidade e somente três dias depois eu poderia enterrá-la.
         Levei-a ao cemitério com toda a sua pobreza e ignorância. Maria Isabel sem sobrenome no seu atestado de óbito. Pai desconhecido, mãe desconhecida. Deixa um filho pelo mundo afora.
            O caixão desceu triste e solitário à cova rasa doada pela prefeitura aos pobres da cidade de Itatiaia, bem na beira do Rio Paraíba do Sul. O rio que fazia a fronteira da Alemanha com o Paraná, como ela dizia.
         O marido virou um bêbado e depois de todos esses anos tivemos que mandá-lo embora. Estava completamente fora de controle. Quando ele retornou do cemitério, juntou tudo que era dela, fez uma enorme fogueira no quintal e queimou. Nunca entendi o exato significado desse ato.
         Nada restou dela.
         Nada.
         Wilma viveu à margem da vida e do rio.
          Deve ter desaguado no mar.
          Como os rios.
  
Conto publicado em meu livro Prosas do ninho, vencedor do premio Aureo Nonato como livro de memórias concedido pela Prefeitura de Manaus/AM em 2007."


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