Crônica
Cicatrizes
Eu tenho algumas cicatrizes no corpo. Outro dia, minha filha percebeu uma no meu rosto. Achei muito interessante ela não ter notado antes; ela tem nove anos e só recentemente se deu conta da mesma. Passou a mãozinha e perguntou como me machuquei. Também ocorreu com uma colega de trabalho. Numa manhã, de repente, me olhou mais atenta e disse: ‘”Nossa, mas você tem uma cicatriz no rosto! Nunca tinha notado.” Logo em seguida, disparou se eu não me incomodava, se não tinha como fazer uma pequena plástica e arrumar; eu achei muita graça e ri, enquanto ela me olhava sem entender.
Eu gosto das minhas cicatrizes. Calma, não é loucura. Creio que por serem, de certa forma, discretas, não me ocupam o pensamento. A do rosto é realmente um pouco maior, difícil de passar despercebida por muito tempo, mas não me incomoda.
Tenho uma cicatriz perto do calcanhar, foi um corte feio num pedaço de arame, quando tentei passar por baixo de uma cerca em um pasto imenso onde e eu e meus irmãos estávamos brincando, quando crianças. Tenho algumas no joelho, pois fui uma criança muito arteira que corria, pulava, subia em árvores, caía de escadas, caixotes e gostava de “voar” na pequena rua, sem asfalto, onde morávamos.
Tenho pequeninas cicatrizes nas mãos, que foram diminuindo conforme fui crescendo, por tentar usar a faca para descascar laranjas, fazer brinquedos e alisar varetas, dentre tantas outras travessuras. Tenho também as marcas do tempo, era magra, engordei, emagreci, engordei, emagreci; tive dois partos, amamentei... O tempo está passando e as rugas estão acentuando, meus cabelos digladiando com os fios brancos que insistem, e, ainda, tem a celulite companheira... Sim, definitivamente, eu não sou a mesma menina, cresci, amadureci, vivi e vivo intensamente o que a vida me presenteia e, muitas vezes, me impõe.
Mas, voltando para a cicatriz que tenho no rosto, eu tinha menos de seis anos e cai na calçada quando minha mãe me levava para uma consulta médica, foi um corte horrível na região superior do olho direito. Chorei muito, senti muita dor e demorou para cicatrizar. Com o passar dos anos, ela foi diminuindo. Quando, aos dezenove anos, me apaixonei por ele, na segunda vez que saímos juntos e não foi quando me beijou pela primeira vez, ele passou a mão pelo meu rosto de moça enamorada, acariciou-o, depois olhou nos meus olhos, levou a mão até a cicatriz, desviou o olhar do meu e a observou perguntando como eu a tinha conseguido; contei, ele me olhou com ar sedutor de quem imaginou o quanto eu deveria ter sido traquina, depois olhou novamente dentro dos meus olhos e me beijou. Não foi nosso primeiro beijo, mas naquele momento senti que não seria o último.
Então, a cicatriz continuará ali; e, também, o frio que sinto no estômago quando a memória daquele beijo se encontra com a imagem que vejo no espelho me fazendo sorrir e franzir a testa em cumplicidade.
Sônia Gabriel
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