(Jornal de Caçapava, 17 de junho de 2011.)
Faz muito tempo que degustei esses sabores e cheiros, mas parece que foi ontem cedo, enquanto garoava e fazia frio. Os cheiros são ‘máquina do tempo’ para meu cérebro e coração. Depois de semanas de muito trabalho, um dia de tranquilidade, fiz planos de sair, passear com as crianças, gosto muito de conseguir passear em dia útil, sem ruas transbordando carros, sem gente brigando e empurrando, como tem acontecido aos sábados, em São José dos Campos. Programei-me para caminhar com meus filhos, sem pressa, como realmente gosto.
Amanheceu frio e chovendo. Meu Deus! Amo chuva, mas não aprecio frio, causa-me banzo. Fiquei desconcertada e comecei a arrumar a casa. Dei jeito numa bagunça aqui, organizei outro quarto ali e fui para a cozinha. Resolvi fazer um cozido, como diz minhas tias. Aqueci a panela, derramei óleo, cortei cebola, esmaguei o alho, juntei a carne, sal, urucum e refoguei, deixei-os ali se entendendo com a quentura da panela e fui cortar a mandioca.
Enquanto realizava o ofício, minha filha pequenina, de avental arrastando pelo chão, sentou-se numa cadeirinha de plástico e começou a conversar comigo. Travou prosa animada, pouco eu entendia, mas a alegria da menina invadiu a cozinha. Como numa viagem sem possibilidade de impedimento, comecei a lhe contar das coisas que eu comia na casa de meus pais e ela ria, como se entendesse, ou eu de tanto rir a contagiei. Como saber. As mandiocas e os temperos foram colocados na panela com a carne gemendo na fritura. Água fervendo, panela fechada, fui para a bacia de arroz.
‘Filha!’ Chamei-lhe atenção para o fato. ‘Quando eu era pequena, minha mãe sempre me dava uma colher com a primeira água do arroz refogado. ’ Fiquei pensando qual o motivo de tal ritual. Já me disseram que se fazia isso para evitar anemia, para ajudar a expelir lombrigas, para que a criança não tivesse tristeza... Bebi muita água de arroz refogado, fato é que nunca tive anemia, mas também nunca expeli lombrigas e tristeza não gosta de mim. No final da conta, resolvi dar uma colher para a pequena também. Achei graça e ela disse que estava uma delícia.
O medo de nos ver doentes produzia cada atrocidade, cruz credo, que nojo do Biotônico com ovo de pata. Não suporto pensar no gosto. Minha memória nem ajuda, vez em quando lembro daquilo e me arrepio, o estômago vira todo. E ainda fazíamos troça, já que não nos restava mais nada a fazer, a não ser abrir a boca e engolir a colherada: ‘Credo mãe, é ruim isso com ovo de pato. ’ E o pobre do pato ainda tinha que ver sua reputação ser malograda na boca da molecada.
Mas também tinha coisa boa, que saudade, iogurte aumentado. Na falta de dinheiro e com muita criança, as mulheres eram criativas. Iogurte, na minha infância, não era essa coisa rala que compramos hoje em dia. Os potinhos eram generosos e o creme denso, cheiroso, de forte sabor. Nossas mães não tinham dúvida, esvaziavam os potinhos e enchiam o canecão, adicionavam leite e deixavam lá de um dia para o outro, aumentava, virava muito iogurte. Coisas de mãe. A minha também era mestra no chá de hortelã, chá de folha de laranjeira, doce de figo verde e água-doce (simples água com açúcar, o melhor remédio do mundo!).
Meu almoço foi ficando pronto. Menino rodeando o fogão para saber o que tinha para comer e a pequena aprendendo com ele. O passeio ficou para outro dia, a viagem daquela manhã foi para o passado e seus sabores.
Sônia Gabriel
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