quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Uma história da escritora Ana Lygia


E a noite continua com histórias, Ana Lygia nos envia uma inédita de sua produção. Que privilégio!

Primeiro Amor

"Eu era a menina daquele jardim, a flor que mal se abrira para a vida. Só não sei se era rosa, girassol ou margarida. Sei que delicadeza havia, um quê de mistério e uns ares matreiros de peraltice infantil. É certo que se abriria; porém, o jardineiro caprichoso ainda não havia tocado em seu talhe.
Eu era a menina, flor incerta e acordada toda manhã com a cerração invadindo o quarto, me ardendo as narinas ainda sonolentas, até que o odor do café passado no coador de pano vinha me dar “Bons dias”. Despertando-me, bichinho que eu era, a farejar os cheiros novos e antigos do mundo.
E o meu mundo tinha cheiros, tinha cores e sabores. O melhor deles tinha cheiro de avó: morna mistura de pele, de cozinha e flor, mansidão de olhos azuis que sempre naufragavam em mim, com a calmaria inexprimível da segurança que é “estar em casa”.
Eu era a menina, a flor do dia que farejava naquelas manhãs, minhas melhores memórias de uma vida inteira.
Café coado, num zás levantava. Pijaminha de flanela cor de rosa, saía apressada vestindo os chinelinhos de pelúcia, as luvas e a touca. Tomava o dinheirinho que me cabia e ia, mulherzinha independente a esperar por aquele que me conferia por alguns minutos, daqueles dias brancos, a minha maioridade.
Sentada no muro amarelo, brincava com as moedinhas e com a fumaça que saía da boca. O narizinho vermelho queria escorrer, mas logo o protegia pela quentura das luvas de dedos multicores.
Eu esperava com a ansiedade que se espera um grande amor. Apesar de que, naquele momento eu sequer imaginasse o que seria amar alguém que não fosse da minha família, algo que não pertencesse ao rol dos meus afetos.
Geralmente ele era pontual, mas quando se atrasava era como se eu fosse lançada nas masmorras da solidão, nos angustiosos abismos do mundo “dos grandes”. E esse atraso nunca passava de dez minutos, dez dolorosos minutos, areias que gotejavam, vagas, na ampulheta egoísta do tempo!
Eis que ele vinha, pedalando sua bicicleta verde, com sua voz de tenor que apregoava “ó paderuô, paderuô” ... “ó paderuô, padêro!”. 
Aquela figura forte do negro ia se aproximando e crescendo cada vez mais diante de mim, que corria para ele, arrastando os chinelinhos. Dava meu “Bom dia, padêro” e esperava ansiosa que ele abrisse aquela caixa boa de Pandora. Ao fazê-lo uma onda de delícias e cheiros me invadia. E apesar de certo o pedido, sempre me causava certa inquietação. Tantos sabores e cheiros que eu era capaz de segui-lo, flautista de Hamelin que era.
Nunca soube o nome daquele negro de olhar sereno, de ágeis mãos e sorriso branco de São Benedito; mas ele sabia o meu, pois após a compra diária, pão sovado e broa de milho, ele se despedia dizendo “Gradecido, Dona Aninha”. Nunca soube seu nome, mas com aquela altivez ele só poderia ter nome de rei: um rei africano, ex-majestade das senzalas cafeeiras da cidade. Nunca soube o seu nome, mas não creio que fosse necessário: o amor dispensa certas formalidades.
Fiel como se deve ser aos amores o esperei diariamente, por muito tempo... “Bom dia, padêro!”...”Gradecido, Dona Aninha”.
Esforço-me para lembrar quem rompeu o compromisso tácito que havia entre nós. Se foi ele que deixou de ir, ou se fui eu que deixei de esperá-lo. Talvez isso, uma vez que cresci e já não usava mais o pijaminha de ursinhos estampados na flanela cor de rosa. Certo é que ele foi o primeiro homem que eu amei na vida, mesmo sem saber o que era isso.
Hoje, mulher, olho o passado com a certeza de que o amor vem ao nosso encontro. Tão certo quanto uma equação! O cenário não é mais o mesmo e a flor de pijama que arrastava o chinelinho, cresceu. Mas ainda olha e procura e espera ansiosa por ele que vem, senhor do espaço e do tempo, com os olhos serenos e sorriso desarmado para dar nomes às coisas em melodias passarinhas, jardineiro encantado."

Ana Lygia





2 comentários:

Mistérios do Vale disse...

Lygia, obrigada por querer estar com a gente em mais um dia de histórias! Volte sempre, até ano que vem... Beijos

NaLygia disse...

Obrigada pelo carinho, Sônia!
Conte sempre comigo!! Escrever é a minha alegria e achei delicioso compartilhar isso com o blog e os seus seguidores :)
Beijos,
Lygia