quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Uma história da Sônia Gabriel



História de uma lavadeira

Seu Onofre morava no inicio da rua das Primaveras, estava sempre sentado naquela cadeira preta, na varanda. Em sua casa, de quintal grande, tinha um abacateiro e quando era tempo, a molecada fazia a festa, eles jogavam pedras para que os frutos caíssem , depois pulavam a cerca baixinha e branquinha e saiam correndo, sentavam nos morrinhos que só cidade do interior tem  na beira da estrada e se deliciavam; não era preciso nem açúcar de tão doce e gostoso que era o fruto . Seu Onofre era só gritos:
_ Filhos de uma cadela! Ah! Se eu os visse, os mataria todos de tanta pancada. Levem tudo que puderem e morram de tanto comer, seus larápios. Mortos de fome...
Logo saia Dona Alzira, calma, tocava o ombro de Seu Onofre sossegando-o e fazendo com que retornasse à cadeira, já que a esta altura se equilibrava numa bengala de bambu fino, esbravejando para todas as direções e a molecada rindo da cena patética.
_Onofre, não se irrite, o abacateiro está “ empencado” , chega a se arcar de uma banda só. Moleque é assim mesmo! Até parece que nunca foi criança.
_ Molecada do inferno, se eu não fosse cego...
_ Onofre, não fique remoendo, lhe quero tanto bem, homem. Me entristeço quando você emburrece deste jeito.
Seu Onofre sentava, pendia a cabeça loira para o lado, os olhos azuis bonitos e parados davam-lhe um ar pensativo:
_ Alzira- chamava-lhe baixinho.
_ Fale.
_ Sente-se aqui.
Ela vinha , sentava-se , suave como era e encostava a cabeça no ombro do marido.
_ O que mais sinto falta é de lhe ver. Ah! Alzira, lhe vejo aqui na minha cabeça , com aquela cabeleira preta, lisa, comprida, me olhando com aqueles olhos pidões de beijos. Alzira, você não anda tomando sol à toa, não é?
A mulher balançava a cabeça negativamente como se o marido pudesse ver.
_ Você sabe que toda vez que toma sol, a pele fica vermelha e com feridas.
_ Onofre , não se preocupe comigo.
_ Alzira...
_ Fale.
_ Lembra que você era a moça mais bonita do bairro, todos os moços queriam namorá-la. Mas você só tinha olhos para mim. Nunca em minha vida tinha visto mulher mais bonita. E eu que não tinha nada para lhe oferecer e continuo não tendo muito também.
_ Onofre, você nunca poderia imaginar que fosse ficar assim e pense apenas que somos felizes.
_ Acidente estúpido, aquele motorista bêbado, você tão distraída, se eu não pulasse estaria morta. Quando vi aquele carro vindo em sua direção, desejei ser cego para não vê-la morrer. Quem poderia imaginar que o traumatismo me cegaria.
_ Onofre, tenha paciência, Dr. Celso há tantos anos vem dizendo que não há nada físico que te impeça de ver, tenho fé que um dia você verá novamente.
_ Alzira, não consigo ser feliz sabendo que você passa os dias no tanque lavando roupas para aqueles homens porcos.
_ Eles não são porcos, homem; são bons rapazes, pagam certinho.
_ Vivendo numa casa aonde só tem homens, só podem ser porcos.
_ Onofre, vivem assim, pois precisam, não trouxeram suas esposas por não terem como mantê-las . São bons homens, têm aquela alegria que só o povo que vem de lá consegue ter. Já reparou, Onofre, que não conhecemos nenhum baiano que seja triste?  Além do mais, me tratam com muito respeito e educação.
_ Como pensa que me sinto, Alzira, sou imprestável e eles passam toda semana aqui sem sequer me cumprimentar.
_ Isso não é verdade, meu bem! Você precisa se animar, toda essa angústia não te faz nada bem.
_ Alzira, solte seu cabelo para que eu possa tocá-lo.
Ela soltou o coque no alto da cabeça e caiu por seus ombros uma cascata acinzentada por tanto trabalho e dedicação. Seu Onofre sentiu aquele perfume de sempre e sua mente viajou anos e anos no passado para que sua vida valesse a pena.
Sempre no inicio da noite, Dona Alzira gostava, depois do banho, de passar óleo de amêndoas no cabelo, o perfume preenchia toda a casa e dava um frescor. A casa grande e bonita para os padrões de Sesmaria, era decorada com a simplicidade que o casal possuía,  apesar disso era muito agradável e perfumada com óleo de amêndoas. Constantemente,  Seu Onofre se lembrava, poderia ter feito uma carreira na subprefeitura, não fosse a cegueira que o obrigou a ser encostado pelo INPS. O tempo foi passando e ele desanimando em voltar a trabalhar. Como poderia fazer?
Mais de vinte anos tinham se passado desde aquela tragédia. Dona Alzira era bonita demais para morrer. Aquele cheiro de amêndoas, eterno perfume. Aquela cabeleira vasta e negra, uma cascata brilhante e esvoaçante. Era beleza demais para apenas um homem. Um homem comum, um homem apenas para tanta beleza e sensualidade. Seu Onofre não conseguia se imaginar sem toda aquela beleza, talvez por isso tenha se cegado. Dr. César questionava sobre isto. Nada impedia aquela criatura de enxergar a não ser ele mesmo.
Dona Alzira interrompeu os pensamentos de  Seu Onofre, colocando a mesa para o jantar.
Pela manhã,  Dona Alzira se levantou, esticou o corpo de meia idade, caminhou para o banheiro, lavou-se, trocou-se e abriu a casa. Logo, lá vinha Consuelo, trazia o recado dos rapazes-da-casa-da-roupa-para-lavar , junto com a chave. Dona Alzira preparou o café, fritou mandiocas cozidas na véspera e colocou sobre a mesa. Saiu para lavar as roupas. Enquanto subia a ladeira acentuada da rua, olhava uma casa e outra, acenava para uma mulher ou outra. Já não reparava nas construções, nem nas árvores, nem nas crianças. Aliás, fazia muito tempo que havia desistido de tê-las. Na família de Seu Onofre, numerosa de irmãos, apenas dois dos nove tinham filhos. Era algo que não conversavam mais. Dona Alzira tentava poupar o marido já tão consumido pela cegueira. Chegou à casa, desenroscou a corrente no portão, entrou. Foi direto para o quintal. Lavou toda a roupa suja do final de semana e quando deu por si , já passava do meio-dia. Nem abriu a casa para dar uma ajeitada como sempre fazia, mas sem dar conta disso para  Seu Onofre, senão falaria eternamente em sua cabeça.
O marido estava sentado na mesma cadeira com a mesma expressão parada de sempre. Ela veio caminhando devagar, olhando-o com um misto de ternura e piedade. O homem parecia sentir essa piedade e isto o inquietava ainda mais.
_ Como está Onofre?
_ Bem. Ruminou.
_ Fez bom  desjejum?
Balançou a cabeça,  afirmativa.
_ Agora vou preparar o almoço.
Entrou.
O homem continuou ali, parado, quase se podia perceber uma lágrima tomando-lhe os olhos. Parecia uma criança sentindo-se enjeitada, acuada sem poder se virar sozinha e então tendo que submeter-se.
E assim, passavam os dias , as horas, os minutos, numa estranha espera que o acometia sem exatamente saber tratar-se de quê. Ultimamente, entretanto, estava muito mais acometido da angústia. Era como se algo muito forte fosse acontecer. E aconteceu...
Certa noite, Seu Onofre deitou-se aborrecido com a história das lavagens de roupa. Dentro de sua cabeça começou um burburinho de sonhos e lembranças. Dormiu com os sentidos lhe pesando. Viu em sua frente uma rua larga, calma. Ele de um lado observava, do outro, Dona Alzira. Mesmo dormindo, pensava como poderia estar vendo? Não enxergava mais. Mas, ela estava lá do outro lado da rua. De repente, ela o viu e ofegante veio ao seu encontro. Ele, então, percebeu que vinha um automóvel. Angustiado, tentou correr para salvá-la. Corria, mas não saia do lugar. Viu, desesperado, o carro atropelar seu grande amor. Atropelada a mais bela criatura que ele já havia conhecido. As lágrimas o sufocavam de tal maneira que sua visão se tornava turva. Num momento tudo se tornou um grande silêncio. De longe, ele olhava o corpo no chão. Aproximou-se e confuso viu, ali jogado, não o corpo de Dona Alzira, mas o de uma mulher muito parecida,  mais velha, muito mais velha. Tinha os cabelos acinzentados e a cintura mais gorda. Rugas povoavam o rosto e a pele já era flácida. Aquela figura envelhecida, acabada pelo tempo e tanto trabalho, apavorou o íntimo dele. Então começou a gritar desesperadamente e quando se deu conta estava acordado e a mulher deitada ao seu lado, tonteou.
O fôlego foi se recuperando aos poucos e ele conseguia caminhar ao lado da cama, silenciosamente, ameaçava tocar a mulher, mas não conseguia coragem, algo dentro de si mesmo o repelia. Seus olhos ainda estavam como que embrumados,  mas desanuviavam quanto mais ele fazia força para entender. 
Seu Onofre sentou-se no baú e ali ficou fitando a esposa e pensando, pensando...
Tanto pensou que não percebeu amanhecer. Seu ar compenetrado era tão profundo que Dona Alzira acordou e não percebeu o que de extraordinário havia acontecido ali. Passou pelo marido, fez sua rotina e nada notou de diferente.
Quando voltou da lavagem da roupa, estranhou ao não encontrar  Seu Onofre sentado em sua cadeira. Parou no meio do caminho e um frio lhe percorreu a espinha. Aquele frio característico que só as mulheres devem sentir; o frio que alerta os sentidos para que alarmem-se e preparem-se: algo está errado. Só o olho feminino consegue perceber a linha tênue que detecta qualquer anomalia na rotina dos segundos, minutos e dias.
Enquanto caminhava, o chão a puxava, as pernas pesavam-lhe tanto que um discreto suor apontava o esforço que fazia. Chegando à varanda, Seu Onofre apareceu na porta. 
_ Alzira.
O nome quase não podia ser ouvido de tão baixo que fora pronunciado.
Um fulgor tomou conta dela e a inércia se fez presente. Sentou-se. Percebeu o que tinha acontecido e calou-se. Fechou-se em copas. Intimamente sabia que isto aconteceria mais cedo ou mais tarde, o próprio médico já havia alertado para a possibilidade.
Seu Onofre andou, andou, percorreu toda a varanda, mas não ousou falar.
No final da tarde, Dona Alzira levantou-se, doíam-lhe todos os ossos do corpo, preparou-se para deitar. Não esbarraram-se, não falaram-se. Ele apenas a olhava.
Deitaram-se.
Amanhecendo Dona Alzira não o encontrou . Olhou pela casa, silenciosa como sempre e nada. Vieram os rapazes baianos, deixaram a chave. Ela lavou a roupa, ajeitou a casa e voltou. Ralhou com os moleque que acertavam o abacateiro e lhes deu alguns, fez seus afazeres e descansou no silêncio da varanda.
Nas lembranças não conseguia buscar nenhuma palavra daquele homem para ela, os elogios sempre foram para sua beleza, jamais houve um suspiro para a mulher que era. Compreendeu que era melhor o silêncio e assim continuou.


Sônia Gabriel


6 comentários:

Chegando Perto disse...

Boa Tarde! Nesta tarde, quero saber:

Quanto

Quanto amor...
Quanto ardor...
Quanto sofredor...
Quanto desamor...
Quanto temor...
Quanto terror...
Quanto sabor...
Quanto suor...
Quanto odor...
Quanto imperador...
Quanto marcador...
Quanto opressor...
Quanto apontador...
Quanto anador...
Quanto humor...e descrentes como pudor
Muitos.

(CUESTA, Sandro Luiz).

Mistérios do Vale disse...

Meu Deus! Quanta honra, Sandro. Que lindo, muito obrigada por compartilhar sua obra.
Paz e bem!

Chegando Perto disse...

Para você, Sonia Gabriel eu gostaria de dizer:

Se

Se há sentimento
Há perdão
Com emoção ao som do cordão
Que não senti, quanta gratidão

Temos todos aqui agora
Uma vida que não se renova
E esta é a única que temos

Se eu calar a voz do vento
Chegará de vez o tormento

Se a vida me levar
Quero chegar bem devagar
Caminhando pelo luar
Sem me machucar

Ao brilho do eclipse
Encarno um pouco de alpiste
Diante do belo vestido chique
Me pararam na blitz

(CUESTA, Sandro Luiz)

Chegando Perto disse...

Se

Se há sentimento
Há perdão
Com emoção ao som do cordão
Que não senti, quanta gratidão

Temos todos aqui agora
Uma vida que não se renova
E esta é a única que temos

Se eu calar a voz do vento
Chegará de vez o tormento

Se a vida me levar
Quero chegar bem devagar
Caminhando pelo luar
Sem me machucar

(CUESTA ,Sandro Luiz)

Chegando Perto disse...

Uma Sereia

Cadê a sereia
Que eu vi na areia
Usando uma coleira
Debaixo da pulseira
Cobrindo a cegueira
De ver a faxineira
Sem a mensageira
Na pele da cerejeira
Sem nenhuma passageira
Que voltava com a estrangeira

(CUESTA, Sandro Luiz)

Mistérios do Vale disse...

É muito chique! Obrigada por compartilhar, viu!