sábado, 28 de agosto de 2010

História contada pelo Professor Ivon...

Uma história contada por este cavalheiro é uma honra para nós. Claro que serve!


"Olá Sônia,
Durante sete anos lecionei História num Colégio da cidade de Cambuí, aqui em Minas.
Tive agora um encontro com ex-alunos e colegas professores após uma palestra que fui fazer.
Será que essa história vai servir?

Lembranças de Cambuí

Estávamos reunidos nos fundos da casa Verde depois de uma palestra sobre as Lendas do Descobrimento do Brasil.
Tinha preparado a palestra com carinho e esmero. Tema que eu gostava e conhecia muito bem. Tema sem medo. Tranquilidade , até chegar ao local da palestra. Muitos ex-alunos, muitos colegas. Gente que eu conheci e aprendi a amar e respeitar. Gente boa, hospitaleira, alegre, descontraída. Fiquei emocionado. Tanta gente para abraçar e tentar relembrar quem era......
- Me lembro de você, mas não sei seu nome.
- Ora , professor, eu sou o Richardson.
- AH! Agora me lembro, mas você mudou muito, ficou homem grande, não poderia imaginar . Me desculpava.
Desculpa boba, chocha, só para ter o que falar.
O tempo faz estragos na memória da gente. As lembranças do passado ficam com as imagens daquela época, não se atualizam por si mesma. Precisam de novas imagens para justapor às antigas. Quem se encontra todo dia tem sempre as imagens atualizadas e nem percebe as modificações sofridas. São modificações constantes.
Por exemplo os pais não notam que os filhos cresceram. Quem está de fora percebe.
Por isso os filhos são sempre nossas crianças indefesas.
O tempo que passa teima em voltar com roupagens diferente, de novos modos, só para iludir a saudade e machucar o coração. Onde será que o tempo esconde as imagens do passado? No coração tem uma gaveta especial onde ficam escondidas essas imagens. De repente vem alguém e inadvertidamente abre a gaveta e ...... as imagens se libertam. Mas não se reconhecem. Estão modificadas. Culpa do tempo.
Aquele pessoal era como meus filhos. Queria-os sempre jovens, adolescentes, travessos. Vê-los adultos, casados, com filhos, foi um choque.
A sala estava cheia de olhos alertas para o que eu dizia e eu tentava descobrir quem era quem. Como tinha sido. Alguns já tinham se revelado. Outros continuavam a me intrigar. Quem será? Ah! Aquele tipo de rosto eu conhecia, conhecia aquele sorriso, aqueles olhos. Conhecia , era verdade, mas não ligava o tipo a nenhum nome.
Sabíamos que aquele momento iria passar, consumir em si mesmo, desaparecer na própria chama que o fazia existir. E isso tornava belo o encontro. Dava tranqüilidade a tantos olhares.
Ficar ausente não mata a saudade mas mata os nomes . Era como olhar através de uma janela e ver as pessoas que se movimentam, muito distantes, intocáveis.
A janela do tempo é diferente da janela da alma. O tempo é inclemente, maltrata e modifica a pessoa. Na janela da alma somos sempre jovens, alegres e cheios de viço.
E eu olhava os tantos olhos pela janela da alma e tentava compreender pela janela do tempo. Labuta inútil, sem proveito. Não tinha como conciliar. O tempo foi mais forte. Mas a alma foi caridosa. O tempo modificou e maltratou; a alma conservou o tom do amor. E o amor põe belezas onde belezas não há, põe melodia onde a voz é débil.
Meu coração batia diferente e minha voz por diversas vezes perdeu o tom. Mas tudo foi perdoado, até mesmo quando derrubei, desajeitado, as folhas de transparências. O clima de amizade foi mais forte. Eu o percebia não somente pelo sentido da visão e da audição, mas o enxergava com o coração.
Uma ex aluna, Anunziata, fez a minha apresentação. Coisa sem precisão, pois eu era conhecido de todos. Mas gostei. Foi um momento para recordar alguma coisa. Anunziata esta viúva, morando em São Paulo, com dois filhos, já crescidos. Era professora numa escola e orientadora em outra. Labuta difícil. Igual a todos nós. Pouco ganho; mas muita felicidade. Para ser professor é necessário uma grande dose de desprendimento e um imenso desejo de ser feliz. Todo professor é feliz. Se não for feliz não é professor. Não há como ser de outro modo, pois tem que estar fazendo o que gosta e deseja. Não por obrigação, mas por amor. Ensinar é um ato de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles, cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia de nossas palavras.
Quem ama faz com carinho, dedicação e disponibilidade. Entrega-se totalmente, esquece o compromisso assumido, e o faz naturalmente, espontaneamente.
A parede que faz fundo na sala estava revestida de plástico preto e um retroprojetor projetava à direita, em baixo, uma etiqueta com o nome do Colégio , a disciplina História, o meu nome e o do aluno. Era assim que eu pedia para serem encadernados os livros e cadernos de História.
Quando cheguei para lecionar nesse Colégio as alunas me perguntaram que cor queria que fosse encadernados os livros e cadernos . Fiquei boquiaberto, pois nunca tinha deparado com esse problema. Dos Colégios de onde vinha ninguém se preocupava com essas coisas. Achei que aquilo era uma grande frescura. Coisa de adolescentes mimadas. Não sabia o que dizer. E elas insistiram, mais ainda, ao verem o meu embaraço. Frescura paga-se com frescura, pensei. Escolhi a cor mais esquisita que poderia e disse em bom tom:
- Rosa.
Elas me olharam espantadas e eu acreditei que as tinha chocado. Mas não. Rosa era a cor dos cadernos de Português. Precisava escolher outra.
A mente satânica trabalhou aceleradamente e encontrou aquela que realmente chocou:
- Preto, disse resoluto.
O choque foi real. As meninas perderam o folego, o riso desapareceu dos lábios. E contestaram.
- Mas preto, fessor! Isso não é cor. Escolhe outra, vá.
Fui irredutivel. Estava escolhida e queria tudo nessa cor. Sem exceção.
Fiquei marcado pela cor preta, durante todo o tempo em que lecionei nesse Colégio.
Agora, em frente a mim, para relembrar, uma grande capa de caderno, preta, com a etiqueta identificadora."


Muito obrigada, caro historiador!
Sônia Gabriel

Um comentário:

Rita Elisa Seda disse...

Tempo bom esse... época em que eu e meus irmãos recebíamos, todas as noites, queijinho nozinho, que íamos desfiando aos poucos, comendo sem pressa; de tempos em tempos era a vez do maravilhoso morango, que comíamos até nos fartar. Isso sem contar nas idas à linda Cambuí, só para colher a fruta no pé. Uma história puxa a outra. Com essa aí veio o fio dessa memória... tempos bons, inocentes, que não voltam mais!